Do Morar ao Estudar: infâncias, territórios, mobilidade e formação cidadã

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As cidades são moldadas pelas formas de viver, circular e sonhar das pessoas que nelas habitam. No entanto, ao refletirmos sobre o espaço urbano — seus desafios e potencialidades —, é comum que nós, adultos, deixemos de fora as vozes das crianças, mesmo quando as decisões impactam diretamente suas vidas.

O projeto “Do Morar ao Estudar” é proposto pelo Coletivo Ponte (ATHIS na Baixada) em parceria com o Instituto Procomum e fomentado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU/SP). Conta, ainda, com apoio da Secretaria da Educação de Santos (SEDUC Santos) e das associações locais: Associação Comunitária da Vila dos Criadores e Associação de Moradores do Jardim Piratininga.

A iniciativa nasce do desejo de incluir o olhar das crianças sobre a cidade, especialmente a partir da reflexão sobre a mobilidade urbana e suas experiências no trajeto entre a casa e a escola. A proposta é orientada pela escuta de demandas dos moradores e pela atuação anterior do coletivo no território da Vila dos Criadores, em Santos (SP), que inspirou o desenvolvimento desta nova etapa, agora em diálogo com a comunidade escolar.1

Neste projeto, o foco se volta ao cotidiano das crianças e adolescentes, especialmente em relação ao deslocamento entre os bairros da Vila dos Criadores e do Jardim Piratininga — um contexto marcado pelo direito à moradia em disputa, debates sobre urbanização e desafios concretos para a circulação diária. Por meio do ambiente escolar, o projeto busca criar pontes entre o morar e o estudar, reconhecendo as infâncias como agentes fundamentais na construção do presente e do futuro das cidades.

A relação entre a Vila dos Criadores e o Jardim Piratininga

Relação geográfica entre os dois bairros. Fontes: Google Earth. Imagem adaptada, 2024.

A Vila dos Criadores surgiu na década de 1990, quando famílias em situação de vulnerabilidade passaram a ocupar uma área de mangue nas margens do Rio Casqueiro, próxima ao Porto de Santos. A comunidade se formou ao redor de um antigo lixão a céu aberto, onde os moradores coletavam materiais recicláveis e criavam animais para complementar sua subsistência – prática que inspirou o nome do local. Mesmo após a desativação do lixão, em 2003, muitas famílias permaneceram no território, enfrentando a ausência de políticas públicas e a indefinição quanto ao direito de permanência.

Até hoje, a Vila dos Criadores — que ainda luta pela permanência no território, aguardando decisão judicial — não dispõe de equipamentos públicos básicos, como escola, unidade de saúde ou áreas de lazer. Essa ausência obriga as crianças, adolescentes e demais moradores a realizarem deslocamentos diários até o bairro vizinho, o Jardim Piratininga, em busca de atendimento educacional, médico e social. Seja a pé, de bicicleta, ônibus ou carro, os trajetos entre os bairros enfrentam os mesmos desafios: trânsito intenso de caminhões e infraestrutura precária, o que acarreta em exposição a acidentes, principalmente para crianças e pessoas com mobilidade reduzida.

O Jardim Piratininga, por sua vez, é um bairro residencial consolidado, criado no final da década de 1960 como parte de um projeto habitacional popular. Ainda que também enfrente desafios relacionados à mobilidade e à proximidade com a zona industrial e portuária, o bairro conta com escolas, posto de saúde e outros serviços essenciais, que hoje atendem tanto a população local quanto parte significativa dos moradores da Vila dos Criadores.

A convivência cotidiana entre os dois bairros revela a sobrecarga dos equipamentos públicos e evidencia a desigualdade na oferta de serviços urbanos, consequência direta da ausência de políticas públicas adequadas diante da situação de irregularidade fundiária da Vila dos Criadores. Embora os bairros apresentem trajetórias distintas, ambos compartilham um contexto de segregação territorial e enfrentam os impactos da dinâmica portuária e industrial.

Reconhecer essa realidade é fundamental para pensar ações que fortaleçam o direito à cidade, especialmente para as crianças, que enfrentam esses percursos todos os dias. Ao ampliar o debate sobre mobilidade urbana, infraestrutura local e qualificação dos espaços públicos, contribuímos não apenas para um território mais seguro e acessível, mas também para a formação cidadã das novas gerações — que aprendem, desde cedo, a se relacionar com a cidade e a lutar por seus direitos.

Primeiros passos do projeto com as crianças

As atividades do projeto “Do Morar ao Estudar” tiveram início nos dias 20 e 27 de março de 2025, com oficinas realizadas na UME Dr. José da Costa e Silva, no Jardim Piratininga, em Santos/SP. As ações envolveram turmas do 6º ano do ensino fundamental e marcaram o início de uma relação potente entre o projeto e a comunidade escolar.

No dia 20 de março, a oficina começou com uma introdução ao tema da mobilidade urbana, em que os estudantes foram convidados a compartilhar os modos como se deslocavam até a escola. Através de uma votação coletiva, descobrimos que muitos vêm de outros bairros e cidades da região, como São Manoel, em Santos, e a Vila dos Pescadores, em Cubatão — territórios que, assim como a Vila dos Criadores e o Jardim Piratininga, também enfrentam desafios urbanos semelhantes. Isso revelou a diversidade de trajetos e vivências que atravessam o cotidiano escolar das crianças.

Em seguida, introduzimos a discussão sobre identidade e pertencimento. A partir de referências artísticas como Frida Kahlo, Van Gogh, Jean-Michel Basquiat, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, entre outros, propusemos a criação de autorretratos, estimulando a expressão individual, com suas características mais marcantes, a autonomia criativa e o reconhecimento de suas histórias. Mais do que uma atividade artística, o autorretrato foi uma forma de provocar reflexões sobre quem somos, de onde viemos e quais marcas carregamos. Reconhecendo nossa identidade e também compreendendo nosso posicionamento no mundo, fortalecendo a noção de que nossa relação com a cidade não é neutra, mas atravessada por classe, raça e gênero.

Imagens da primeira oficina “Auto-retrato”

Ainda durante essas trocas, surgiram reflexões espontâneas sobre acessibilidade. Um estudante mencionou a cadeira de rodas como meio de transporte, o que abriu espaço para o grupo debater sobre os desafios enfrentados por pessoas com mobilidade reduzida. Os próprios participantes apontaram problemas como calçadas irregulares e a falta de rampas no entorno da escola. Também relataram situações vividas nos trajetos diários, como buracos, excesso de calor, ausência de arborização e o tráfego intenso de caminhões

Embora alguns estudantes inicialmente demonstrassem dificuldade em se expressar, aos poucos foram se envolvendo, com apoio da equipe e dos professores, que também participaram da atividade. O momento gerou trocas significativas, fortalecendo vínculos e promovendo a valorização das subjetividades. Esses relatos e a atividade lúdica e pedagógica da oficina proposta, trouxeram à tona uma leitura crítica do território e de si mesmos, ampliando as possibilidades de aprofundamento nas próximas etapas do projeto.

A segunda oficina aconteceu no dia 27 e foi dividida em duas partes. No início, relembramos os aprendizados do encontro anterior e introduzimos o conceito de escala humana, relacionando o corpo das crianças com o espaço da escola e da cidade. Para também desenvolver o trabalho em equipe, em duplas, os estudantes desenharam seus próprios contornos no chão, utilizando papel e caneta. A partir dessas formas, foi possível comparar as proporções corporais com as dimensões de modais de transporte como bicicletas, carros, ônibus e caminhões. A discrepância entre o tamanho dos corpos e o dos veículos gerou surpresa e curiosidade, estimulando novas perguntas e reflexões.

Na segunda parte da oficina, os participantes foram convidados a representar, em grupos, os caminhos que percorrem entre suas casas e a escola. Os mapas criados não seguiram a lógica técnica da cartografia, mas sim uma abordagem sensível e criativa, em que destacaram elementos importantes de seus percursos: ruas, casas, praças, igrejas, pessoas e sentimentos. Ao final, os grupos apresentaram seus trabalhos e compartilharam suas percepções sobre o espaço urbano.

Imagens da segunda oficina “Escala humana”

O entusiasmo das crianças e o envolvimento crescente dos professores mostraram que estamos construindo, de forma coletiva, um ambiente fértil para a troca de saberes e o fortalecimento da cidadania. Esses primeiros encontros confirmaram o interesse das turmas em refletir sobre o território em que vivem e sobre seu papel na construção de uma cidade mais justa, segura e acolhedora para todos.

Próximas ações

Seguimos com entusiasmo rumo aos próximos passos do projeto e na construção coletiva junto às comunidades. Em breve, novas atividades acontecerão com as turmas, trazendo ainda mais descobertas e reflexões. Convidamos familiares, educadores, profissionais da arquitetura e do urbanismo — e todas as pessoas que se identificam com essa causa — a acompanharem as ações por aqui e também pelas redes sociais em @athis.na.baixada.

Ficha técnica

Equipe de Arquitetura e Urbanismo
Coordenação: Daniela Colin e Jean Pierre Creté (voluntário)
Responsável Técnica: Tainá Muniz
Arquitetas operacionais: Denise Santos, Gabriella Andrade e Tayane Crudelli
Estagiária: Júlia Apolinário

Apoio Operacional
Articuladora Social e Educadora: Carmelita Danúbia de Araújo

Comunicação
Bruno Celso Novato e Renato Colin

Gestão
Administrativa: Flávia Krol
Financeira: Fernanda Gomes

_________________________________________________________
Texto escrito coletivamente por: Denise Santos, Gabriella Andrade, Tayane Crudelli e Tainá Muniz

  1. O Coletivo Ponte (ATHIS na Baixada) atua em parceria com o Instituto Procomum na Vila dos Criadores desde 2023. O primeiro projeto desenvolvido no território, com apoio de moradores e da associação do bairro, ocorreu durante a Extensão Universitária para Habitação de Interesse Social na Baixada Santista, realizada por meio do Termo de Fomento 016/2022 do CAU/SP. Nesse processo, foi produzido o documentário “Vila dos Criadores: o direito de (r)existir” (assista aqui). Em um momento posterior, já no âmbito do projeto Plantões de Atendimento ATHIS (Termo de Fomento 011/2023 do CAU/SP), realizamos a prestação de Assistência Técnica com foco no levantamento das condições de habitabilidade das moradias. Esse processo envolveu uma equipe multidisciplinar, que identificou as necessidades de intervenção das famílias da Vila dos Criadores para subsidiar a Câmara Técnica Judicial em andamento. ↩︎

Autor

  • Tainá Muniz

    Arquiteta e urbanista, atua no Coletivo Ponte (ATHIS na Baixada) desde 2023, desenvolvendo projetos coletivos em editais de fomento à habitação de interesse social e educação urbana e ambiental. Também é sócia-proprietária do Estúdio Entrópico Arquitetura, onde realiza paralelamente projetos de arquitetura, assessoria técnica e regularização. É pós-graduanda em Habitação de Interesse Social pela UNIFESP (2025), possui extensão universitária em Assessoria Técnica para Habitação de Interesse Social pela mesma instituição (2023), realizada em parceria com o Coletivo Ponte, e é bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Católica de Santos (2021). Em parceria com colegas do curso de extensão, produziu o documentário "Vila dos Criadores: o direito de (r)existir", que retrata a luta por segurança e regularização fundiária e as vivências da comunidade. Também tem experiência com arte-educação, tendo atuado no SESC com mediação cultural e práticas artísticas. Tem apreço por registrar suas vivências por meio da escrita e do desenho.

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Centro Comunitário

O projeto visa capacitar profissionais, incluindo Arquitetos e Urbanistas, em soluções de saneamento rural, com foco em Soluções Baseadas na Natureza (SbN). Isso envolve o diálogo entre as esferas pública e privada do saneamento, visando à preservação ambiental e ao papel do Arquiteto e Urbanista no desenvolvimento de projetos de saneamento para comunidades isoladas.

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